- Herr Cramer, disse ele, já ouviu falar da pequena Anna Wollenberg?
- A filinha de
- Frau Wollenberg? Que aconteceu?
- Oh, algo terrível. Estava brincando perto do fogão e a mãe derramou-lhe uma chaleira de água fervendo em cima. Queimou-se toda, a coitadinha, na cara, nos ombros, nos braços. Passou a noite inteira gritando de dor, e isso é horrível.
- Deus do Céu! exclamou Cramer. E não chamaram o médico?
- Oh, sim , o Dr. Schimidt esteve lá e deu-lhe ópio, muito ópio, mas de nada adiantou.
- Não fez efeito?
- Nenhum, Herr Cramer. O Dr. Schmidt diz que com certeza nos aqui erramos – demos qualquer outra coisa em vez de ópio.
O queixo de Cramer caiu.
- Impossível! Eu mesmo aviei a receita, disse em seguida. Lembro-me de haver descido da prateleira o frasco de ópio. Não pode haver engano. Oh… aí vem o médico. Espere. Deixe-me falar com ele.
Mortalmente cansado e sombrio, os olhos vermelhos por falta de sono, o doutor foi entrando.
- Frederico acaba de contar-me o caso lá da menina, disse Cramer depois da troca do bom dia. Horrível! Mas quanto ao ópio posso assegurar que não houve engano nenhum. Eu mesmo aviei a receita…
- Eu sei,interrompeu o doutor, mas ha qualquer coisa errada aí e hei de descobrir.
- Mas eu…
- Escute. O ano passado você me vendeu ópio para Herr Weiss e o coitado padeceu mais com a droga do que com a gota. Três meses depois, o ópio daqui quase matou a criada do Bergmann – deixou-o inconsciente três dias. E agora esta cataplasma de ópio que apliquei na pequena Anna fez o mesmo efeito que nada. Cramer, não estou acusando você, mas o seu ópio não presta. Não posso mais confiar nele.
- Eu sei porque é, murmurou uma voz.
Os dois homens voltaram-se e deram com o jovem Setuerner de pé na porta. O médico, irritado, fez-lhe um gesto de arreda.
- Cuide de sua vida. Isto não é da sua repartição.
Depois que o médico saiu, Cramer chamou o aprendiz
- Frederico, que quis dizer com aquilo?
Sertuerner tomou o frasco de ópio da prateleira, sacou a rolha e derramou sobre a mesa um montinho de pó, perguntando:
- Que é isto, Herr Cramer?
- Ora que é isso! Ópio, está claro.
- Puro?
- Certamente que puro, o mais puro que há. Mas estou compreendendo o alcance da sua pergunta, Frederico. Quimicamente não é puro. É uma mistura de coisas. Há aí vários óleos e sais, e talvez alguns ácidos e ainda mais coisas.
- Acha que todas estas coisas são necessárias ao ópio para que ele revele as suas propriedades dormitivas e aliviadoras da dor?
- Ignoro-o, Frederico. Não sei. Não sei. Que é que você pensa?
- Penso, Herr Cramer, que nesta salada de coisas de nome ópio, uma só faz efeito, as outras são enchimentos. Logo, se uma cataplasma de ópio não produz efeito, é que não há nela bastante dessa coisa essencial. E se a dose de ópio é forte demais, isso quer dizer que há nela excesso dessa coisa essencial.
Cramer aprovou de cabeça, lentamente, e o rapaz prosseguiu:
- Muito bem. Se pudermos extrair essa coisa essencial e por fora o resto, ficaremos só com o que importa. Ficaremos com a coisa pura. Poderemos então pesá-la e com maior precisão usar de modo a obter os efeitos máximos sem cair na dose que prejudica o doente.
Cuidadosamente Cramer fez voltar ao frasco os grãos de ópio derramados sobre a mesa, espanejou as mãos e olhou para o aprendiz.
- Escute, Frederico, disse ele por fim. Talvez eu saiba o que você está querendo dizer. Talvez não saiba. Você falou na existência de qualquer coisa neste ópio. Como sabe que há qualquer coisa? Já a viu? Já a tocou? Já a provou? Não.Ninguém nunca fez isso. Ninguém nunca extraiu qualquer coisa de droga nenhuma, nunca!
- E não poderíamos tentar, Herr Cramer?
- Não. Eu não vou me meter nisso. Escute, ainda que haja essa qualquer coisa, não sabemos como descobri-la. Se existe, levará anos para ser descoberta. E ademais, este meu laboratório só serve para pequenas experiências como as que temos feito, não para uma dessas. Muito perigoso e não sei por que não gosto. E o velho boticário colocou o vidro de ópio de volta no lugar. “ Mas se por acaso Herr Sertuerner pensa de modo diferente e está disposto a fazer os estudos á noite; das seis às dez, poderá utilizar-se daquele ópio ali da última prateleira do depósito…”